terça-feira, 30 de março de 2021

MARIELLE

 


Eu moro numa rua chamada Marielle Franco e sou um branco, cheio de dor, cheio de pranto.

De que vale a minha dor? De que vale a minha cor? Se fosse verde não veria. Mas sou o que sou sem contestação e vejo cada um como excelência, as diferenças não são diferenças, são essências;  humanos somos na distinta situação.

É mulher – homem, homem-mulher, mulher-mulher, homem-homem, homem-mulher-homem-mulher-homem-mulher.... o que for.

Eu moro numa rua chamada Marielle Franco porque estou cansado de tanto racismo proclamado, institucionalizado. De tanto desprezo histórico a história, a deturpação exacerbada e minimizadora de traumas reais. Cansado de ver pobreza e miséria nas periferias, nas sarjetas, nas portas de supermercados, nos estacionamentos, nas estradas. Cansado de ver o desprezo que se dá, se dizendo a vítima ser culpada e o culpado a vítima.

Eu moro numa rua chamada Marielle Franco porque eu posso morar onde eu quiser, ainda tenho este direito imune de livre pensar e sonhar. Ainda existe esperança, a crença diz que é a ultima que morre.

Portanto não morre enquanto vivo.

sexta-feira, 26 de março de 2021

A NAVE SEGUE

 

ilustração : paul constantinides


 

 

 

    Eu sou um dos últimos seres humanos sobrevivendo nesta terra, planeta Terra, grande balela! Eu lhes digo, se é que haverá alguém para ler isto que escrevo no futuro, será incrível, já que estamos extintos, melhor dizendo, em fase irremediável de extinção.

    Aqui onde estou, no topo deste edifício de 520 andares não vejo viva alma em volta. Faz mais de ano, quase um ano, que vi a última viva alma. Saiu pela portinha de entrada do edifício onde estou. Saiu sem acenar, sem olhar pra cima e nem pros lados e foi se indo sumindo na perspectiva de tudo. As vezes que me aventuro pelos andares do edifício e nas escadarias vejo corpos inertes, mortos, por todo o lado, espalhados nas escadarias e nos corredores. Estirados no chão. Imóveis como os móveis da sala.

    Tudo jogado fora! A tecnologia, a computação, os mecanismos de flutuação. Os sistemas sócio-políticos desmoronados. Lares desmoronados, empresas falidas, escolas fechadas, tudo por causa do vírus 5.9 que surgiu há dois anos.

    Inicialmente, haviam boatos, comentários, acusando a Rússia de ter produzido o vírus para dominar o mundo. Os Russos, no entanto, alegaram que tinham sido os Estados Unidenses e estes prontamente, por sua vez, também negaram, dizendo que a culpa era dos Chineses. Os chineses obtusamente concluíram que foi o sistema capitalista que tinha produzido o vírus.

    Bastaram dois meses, desde o surgimento do vírus, em que ele se espalhara por volta do mundo inteiro, misteriosamente, menos em Taiwan, que seu efeito já podia ser percebido na sociedade. 

    O vírus tinha um efeito devastador na espécie humana. Aliás, causava três diferentes efeitos, todos surtindo numa explosiva mutação genética no ser.  Alguns que contraiam o vírus sofriam tamanha mutação genética que em semanas, depois de um processo doloroso com surgimento de penas sobre o corpo, os pés se metamorfoseando, os braços se tornando asas, a boca e o nariz bico, e o cabelo crina; a pessoa finalmente virara uma galinha.               Algumas outras, sempre dentro de um processo muito doloroso, viraram vacas e outras porcos. O curioso era notar que a diferença entre os humanos vacas e humanos porcos com os porcos e vacas originais é que andavam com os dois pés. Mas faziam perfeitamente Mu e Oinc Oinc.

    Quando a pandemia se generalizou  iniciou a balburdia dos infectados e os não infectados, aquela bicharada pelas ruas da cidade se digladiando. Foi então que se pode perceber o ardil planejado pelo estrambólico, duro de acreditar, mas real, grupo dos 300.

Quem eram eles?

Aqueles que entenderam quando a sociedade falou – Salve-se quem puder. Que de que fato, era – Salve-se quem tem grana.

    Ao perceberem que não haveria mais recursos alimentares para a totalidade da população de humanos na Terra em pouco tempo, e diante de frustradas tentativas de controle natalino e guerras, promoveram, reunindo os mais notáveis cientistas da época para a fabricação de um vírus de metamorfose genética a ponto de fazer um humano virar um porco, uma vaca ou uma galinha.

    E assim feito, hoje a população metamorfoseada, passou a viver separadamente. As pessoas agrupadas pelas espécies em que se transformaram, vivendo em imensos currais que todos os continentes passaram a ser. O mundo inteiro virando um curral cheio de vaca, porcos e galinha.

    Todos se reproduzindo para alimentar os 300. Os 300, seus familiares e comparsas, que vivem numa estação nos Alpes ou nos Andes, não se sabe. Não se sabe se é numa estação subterrânea, numa redoma, numa plataforma suspensa no espaço. O que se sabe, é que o vírus funcionou, separando a sociedade e transformando as pessoas em animais.

    Bem, aqui estou sentado, escrevendo no topo deste edifício de 520 andares. Estou com frio e solitário. Neste meu reduto final, o que restou, definhando, como muitos, talvez todos, definharam, sem água, sem comida. Ainda assim, com esforço, me mantenho alerta, com uma pequena reserva de água e comida que acumulei, em incursões feitas em cozinhas de apartamentos abandonados neste imenso edifício. Você pode se perguntar como sei disto tudo, dentro deste vendaval maluco que nos assolou, e eu lhes digo que foram as ultimas noticias que captei no meu celular antes da Internet pifar no planeta e acabar a bateria do meu celular.

    Não eram notícias falsas. Sei que minha hora está chegando. E penso sim que sou o último dos humanos, aqueles 300 na montanha não são humanos! A minha única esperança é que me enviem uma nave de resgate e me levem pra Taiwan.

Adeus planeta cruel!

OS DISCOS VOADORES NO BAIRRO DAS MALOQUEIRAS.

ilustração _ paul constantinides


- Seu Mirson!

Era assim que o pessoal do bar chamava o locutor da estação de rádio local, que ficava numa sobreloja sobre um bar ao lado de uma esquina onde ficava uma enorme loja de confecções com oito portas, sendo quatro pra rua do bar e outras quatros pra outra rua que dava na praça da matriz e que tinha do outro lado, a estação de trem e o hotel da cidade.

Era ali que o seu Mirson trabalhava e passava boas horas do seu dia. Nos intervalos descia pra um café e um papo amigo com algum frequentador do bar, ou com seu Manuel, que era o dono do bar e tinha apanhado da esposa quando o pegou agarrando uma funcionária mais nova nos fundos do bar.

No bar do seu Manoel o Mirson encontrava conhecidos, pessoas e conversas. As conversas alimentavam seu show na rádio, chamado: Coisas & Causos.

Certo dia Mirson ouviu de duas pessoas no balcão um papo sobre disco voador. Que alguém viu. E outro também. No mesmo dia, na mesma hora e em locais diferentes.

Dando pouca importância a princípio, Mirson começou a se interessar pelo assunto, assim que a conversa sobre disco voador foi ganhando corpo com o passar dos dias. Inquirindo pessoas no bar de forma extremamente informal Mirson ficou sabendo que vários relatos sobre aparições de discos voadores. A maioria deles apontavam o Bairro das Maloqueiras, um bairro fora da cidade, como o local onde as aparições ocorriam.

Mirson pegou seu fusca num fim de tarde e seguiu em direção ao bairro das Maloqueiras, o bairro fora da cidade.

Para chegar ao bairro se pegava uma estrada vicinal, asfaltada, no setor leste da cidade e seguia-se por pouco mais de um quilometro até a subida de um morro.  De lá, olhando abaixo já se via o bairro.

Mirson trazia consigo um binóculo que pegara emprestado do taxidermista que tomava café sempre as 10hs da manhã no bar do seu Manoel.

Ele ficou horas esperando ver algo no ar, sobre o bairro e nada.

A única coisa que lhe chamara atenção, se bem que não era uma novidade, eram as atividades operacionais e noturnas da base área militar que ficava instalada um pouco além do bairro, separados pelo rio que cortava a planície.

Isto lhe deu uma ideia. No dia seguinte foi até a base aérea militar conversar com um major que conhecera no bar do seu Manoel, aquele que apanhou da esposa.

O major surpreso com sua visita o recebeu oferecendo café e querendo saber do motivo da incomum visita do repórter radialista a sua base.

Mirson lhe contou sobre os relatos que ele ouvira sobre discos voadores aparecem sobrevoando a região do bairro das Maloqueiras.

O major se fez de surpreso e depois de debochado, dizendo que discos voadores eram coisa de lunáticos. Invencionice das pessoas.

Mirson gravou uma breve afirmação do major sobre o assunto, pois estava coletando material para fazer uma apresentação no seu show de rádio.  Depois, se dirigiu ao bairro onde coletou afirmações diversas de pessoas dizendo que tinham visto discos voadores, e de pessoas que não viram, mas ouviram dizer.

Naquele mesmo dia ele recebeu uma chamada telefônica e uma voz abafada lhe disse – Esqueça os discos voadores. E desligou em seguida.  Mirson achou aquilo estranhou, mas nem ligou. Desceu as escadas e entrou no bar do Seu Manoel pois naquela noite o seu time ia jogar e o seu Manoel acabara de instalar uma televisão no salão do bar.

Depois do jogo, de algumas cervejas e muita animação, Mirson se aproximando do carro percebeu um envelope colocado sob a haste do limpador de para-brisa.  Ele abriu o envelope e leu a carta que lhe dizia – Esqueça os discos voadores.

No dia seguinte, Mirson intensificou as chamadas do seu programa sobre Discos Voadores, falando das entrevistas e coberturas sobre o caso das supostas aparições de disco voadores no bairro das Maloqueiras.

No fim da tarde enquanto descia as escadas da estação Mirson se deu com um senhor alto e sorridente que estava ali lhe esperando. Senhor Mirson? O homem se identificou como Roger, era um gringo, se via pelo sotaque, ele lhe disse que sabia algo sobre os discos voadores e queria lhe falar sobre.

Mirson, interessado, lhe sugeriu irem ao bar do seu Manoel, o gringo recusou, perguntou se haveria algum lugar mais discreto. Mirson o conduziu ate o bar do hotel que era de uso quase que exclusivo dos hospedes do hotel, aberta exceções a certas pessoas e entre elas o sr. Mirson.

Instalados numa mesa os dois conversaram. Roger lhe explicou que era um gerente de vendas de produtos eletrônicos e estava viajando pela região com sua equipe de vendas, quando ouviu sua chamada no rádio. Lhe revelou que havia um grupo secreto que monitorava os discos voadores e que haviam sido constatadas em um ano aparições em diversas localidades da região onde estavam. Num raio de 100 quilômetros.

Discretamente colocou algumas fotos na mesa e Mirson as olhou estarrecido.

Mirson disse ao gringo que queria ter contato com este grupo secreto. Roger disse que seria muito perigoso lhe dar este contato. Mirson com seu faro de jornalista ante a resposta do gringo pressentiu que ele tinha a fonte para o contato e o persuadiu de tal forma que por fim Roger cedeu e lhe deu o número de telefone, reiterando sobre o perigo em contatar o grupo. Em seguida o gringo se levantou se despediu de Mirson e partiu levando as fotos.

No dia seguinte Mirson, na primeira oportunidade que teve, ligou para o numero de telefone. Ninguém atendeu. Tentou novamente ninguém atendeu.

Horas depois o telefone tocou e a atendente da estação de radio transferiu para o ramal de Mirson, ele atendeu e uma voz lhe falou – Diga apenas SIM ou NÃO – você nos ligou hoje?

Mirson abruptamente perguntou quem estava falando. A voz enfaticamente repetiu – dia apenas SIM ou NÃO, foi você que nos ligou hoje? Mirson respirou fundo, fez uma pausa silenciosa e disse sim.

A voz falou – Não nos ligue mais, oportunamente entraremos em contato. Mas um alerta. Não faça o seu show sobre Discos Voadores.

Mirson ouviu o clic do outro lado da linha desligando o telefone. Pensou em ligar novamente para o número, mas lembrou do aviso de Roger na noite passada, o perigo. E desistiu de ligar. Mas desistir de fazer o programa de forma alguma. Tudo estava acertado para que no dia seguinte o show, já totalmente gravado, fosse ao ar.

Mirson faria intervenções atendendo chamadas dos ouvintes durante os intervalos comerciais.

Pouco antes do show entrar no ar Mirson recebeu uma ligação e a voz disse – Esteja no alto do morro do bairro das Maluquetes as 19h35. Você não vai se arrepender. Aparição confirmada. Aparição confirmada. E desligaram.

Mirson se apavorou, ficou extasiado, confuso. Era a mesma voz da ligação anterior.

O show começaria as 19h30, o primeiro intervalo seria as 19h45. Mirson avisou ao Bruno da produção pra avisar que ele faria intervenções apenas no fim do show as 20h30.  Entrou no fusca e seguiu para o morro das Maluquetes.  As 19h28 estacionou seu carro no topo do morro. Desligou os faróis e aumentou o volume do radio para que mesmo afastado ele ouvisse o seu programa entrar no ar.

Observando a paisagem, notou as luzes acessas do bairro, algumas pessoas nas ruas, movimento na porta de um bar, ele pensou que estariam decerto esperando o seu show começar. Viu além do rio a base militar, tudo aceso sobre a penumbra noturna.

O show anunciava – Mirson no ar! Coisas e Causos! Hoje a verdadeira história. A história dos fatos! Os discos voadores do bairro das Maluquetes! Está no ar!

E enquanto se iniciava a execução de uma música incidental o rádio silenciara, as luzes do bairro e da base militar subitamente se apagaram.

Mirson sentiu um vento forte soprar-lhe sobre ele.  Tomado por uma espécie de torpor e euforia viu diante de si pairando sobre o bairro, imerso na escuridão, três imensos objetos não identificados. Todos do mesmo formato cônico, como se fossem um chapéu, com holofotes circulares em suas bases circulares, dispostos na borda das bases que levavam ao centro um holofote central e maior. As naves pareciam girar e ao mesmo tempo seguirem lentamente em direção oposta ao rio.

De braços abertos e estendidos Mirson ficou paralisado ante a aparição.

Num átimo as naves sumiram no ar.

O rádio voltou a funcionar e Mirson como que surpreendido se voltou para o carro.

Diante de si, ao lado do carro, Roger olhando em sua direção segurava um revólver apontado em sua direção. Roger! exclamou Mirson.

Roger retrucou com seu sotaque carrego – Disse que era perigoso!

Bum! O estampido ecoou sobre a planície vinda do alto morro.

O corpo de Mirson foi encontrado nas primeiras horas do amanhecer. A policia ainda hoje não tem pistas de quem matou o popular jornalista e locutor da rádio local.  Não há relato de aparições recentes.