segunda-feira, 24 de maio de 2021

SONHO BOM

 



            Tive aquela sensação maravilhosa. Sensorial e abstrata, difícil de explicar. Foi um sonho! Sonho bom posso dizer, sonho bem sonhado dentro do sono bem dormido na cama que mal caibo esticado. Dormi encolhido, recolhido em mim, e sonhei.

            Sonhei que finalmente as formigas azuis, amarelas, roxas, violetas, rosas, opacas, acinzentadas e transparentes se uniram, numa hora de grande aperto, e conseguiram derrotar o Formigão, que no passado, apoiado pelas formigas opacas, foi eleito chefe do formigueiro, e ao tomar posse passou a tentar devorar todas as formigas locais.

            Não foi preciso acordo, discurso ou passeata, foi o monstro dar as caras dizendo ao que veio que as formigas restantes, sentindo-se ameaçadas, se juntaram uma encima da outra, formando uma torre de formigas que de tal forma fez o formigão ficar minúsculo diante dela. A torre de formigas pendeu e pendeu, desabando sobre o Formigão o esmagando.

            As formigas festejaram. E não teve herói da Pátria, não teve mártir.

       Foi um sonho futurista, onde parecia extremamente fácil e descomplicado que a diversidade de formigas se tornasse um corpo só, capaz de derrotar o Formigão.

            Depois?  Depois, ninguém ficou feliz para sempre, mas, foi um sonho bom.

Isto foi.

segunda-feira, 17 de maio de 2021

SOB A CALÇADA (UM PEQUENO ENSAIO ARQUEOLÓGICO)


Há um fato intercalado ao lado, fenestrado como o estrado quebrado, sob a onda fria que do oceano vem trazida pelo vento.  

Há a via intercalada a outra via viária que vasa entre casas operarias, casas intercaladas e caladas, floriculturas, padarias, açougues e a vendinha que vende miudezas numa rua do planeta, nesta esfera abobadada. 

Sob a via intercalada, sob a rua calçada, sob paralelepidos, sob o asfalto fátuo há terra compactada e petrificada, anteriormente pisada por tanta gente escravizada, que numa plantação plantava, plantava sem saber por que eram escravizadas, e eram. Tratadas a chibatadas, algemadas, privadas de viver, totalmente privadas de qualquer coisa além de obedecer. E por vezes cantavam, conseguiam cantar, enquanto os barões bufavam.

Girava a roda, girava...

Sob a via intercalada, sob a rua calçada, sob paralelepidos, sob o asfalto fátuo há terra compactada e petrificada, anteriormente pisada por peões e cavaleiros estrangeiros, explorando a mata e matando índios. Buscando caminhos que os levassem a um rio, procurando predas em delírio, desbravando selvas, novos caminhos, fundando vilas e uma cadeia, e uma igreja, matando índios.

Girava a roda, girava...

Sob a via intercalada, sob a rua calçada, sob paralelepidos, sob o asfalto fátuo há terra compactada e petrificada, anteriormente, muito, mas muito anteriormente pisada por pés descalços e saltitantes que caçavam aves e bichos, dentro do espaço que se chamava nicho até chegar o maldito, que os maldissesse...e só cantou o que não era canto, era o estampido de armas almejando matar.

A roda girando, a girar...

Sob a via intercalada, sob a rua calçada, sob paralelepidos, sob o asfalto fátuo há terra compactada e petrificada, anteriormente, muito, mas muito, muito anteriormente havia nada além de bichos que passavam e nada falavam, nada entoavam. Ouvia-se apenas o vento, rangidos de arvores, pios e uivos que culminavam no ar.

E a roda rodava, a girar....

Sob a via intercalada, sob a rua calçada, sob paralelepidos, sob o asfalto fátuo há terra compactada e petrificada, anteriormente, muito, mas muito, muito, muito, muito anteriormente, havia uma superfície coberta de água que se estendia por todos os cantos, entre picos de montanhas rígidas, reluzente sob o sol.

E girava o mundo, a girar...

Havia um fato intercalado ao lado, fenestrado como o estrado quebrado, sob a onda fria que do oceano viera, trazida pelo vento.  

Noticio um futuro evento.

A nossa inevitável ruína.

segunda-feira, 10 de maio de 2021

COLECIONAR

 

ilustração - paulconstantinides


Colecionar é um hábito que pessoas tem.  A origem deste hábito é difícil localizar, mas há quem afirme que nasceu com a conscientização humana. Já li que este hábito ocorre pelo desejo de permanência através da exteriorização de objetos. Li que se trata de um hábito antigo, muito antigo, e que adquiriu diversas modalidades e formas de se expressar com o passar do tempo. Há por exemplo a coleção como coleta de informações, de relatos. Há outro momento em que esta exteriorização de objetos levou a colecionar artefatos.

Já tive o hábito de colecionar jornais, que eu escolhi a dedo, quando a notícia tinha certo valor histórico. Me lembro que guardei o jornal que estampava na capa a morte de Ayrton Senna, quando um jornal circulou com um pacote de preservativo sexual masculino grudado na sua capa anexado a um apelo contra a Aids. Guardei o jornal que estampava o ataque as torres gêmeas em Nova York, e outros mais que nem me lembro, pois foi um dia entre uma das diversas mudanças que fiz na minha vida que perdi a caixa onde os jornais estavam guardados separadamente em sacos plásticos.

Vão se as coleções ficam as emoções.

Ruinzinha essa frase. Fica para a coleção de frases mal feitas.

Entendo que o fascínio que certas coisas exercem em minha pessoa do que em outras, me levaram a fazer opções de escolha quanto ao que obter e colecionar.

Na alameda das convergências se vê hábitos antigos populares como o ato de se colecionar selos postais, moedas, figurinhas, etc.

Há quem colecione sapatos, ainda hoje ressoa a incrível e inescrupulosa coleção de 3.000 pares de sapatos da ex-primeira dama das Filipinas, nos anos 80, Imelda Marcos. E ainda hoje há um museu nas Filipinas onde estão expostos 765 pares desta coleção, como símbolo da corrupção do poder.

Hoje há muitos políticos e governantes que colecionam atrocidades diariamente.

Vivemos tempos bicudos, como dizia um velho colecionador de tucanos.

Outra frase pra coleção dos fracassos.

Coleções de selos eu já fiz, hoje mantenho duas que falam sobre o aniversário de Brasília, e os adquiri na época em que trabalhava diretamente com Arquitetura. Mantenho muito dos discos que obtive entre a adolescência e a juventude, perto de 400 álbuns guardados numa estante, divididos em ordem alfabética e outros pelo valor histórico que lhes atribuo de uma forma muito pessoal.

Colecionei para meu filho os bonequinhos da seleção de futebol de 94 que você adquiria trocando as tampas marcadas de uma garrafa de refrigerante. Na época fiquei obcecado buscando tampas, trocando em padarias e consegui completar o elenco dos bonequinhos. Guardados desde os 90 os bonecos, já desprezados pelos meus filhos, ganharam uma estante na sala onde leciono e trabalho.

Há quem colecione qualquer objeto que se relacione a coruja, outros a galos, e deve haver muito mais por aí. Há quem colecione a bonequinha Barbie. Nos Estados Unidos, vi uma vez numa “garage sale” que é um brechó muito popularizado e feito na frente das casas das pessoas que decidem botar fora coisas (objetos) da sua casa, vi duas mulheres se digladiando por causa de uma Barbie que estava a venda e dentro de uma caixa fechada. Tesouro para os colecionadores de Barbies.

Certa noite, quando eu tinha 7 anos de idade, meu pai entrou no quarto e me acordou. Olhei pra ele assustado e ele me chamou a atenção apontado para a janela e me perguntando se eu sabia que som era aquele que vinha pela janela. Logo percebi que vinha do quintal e que repetidamente e paulatinamente se repetia entre pequenos intervalos de espaço fazendo um som seco e forte – TEC! Passavam uns segundos – TEC!

Dei um pulo da cama e corri para o quintal, meu pai me seguia dando gargalhadas. Pois é, lá num canto encostado na parede repousava no chão o meu estojo escolar, retangular, de madeira e que o trinco de fechamento estava destravado. Podia-se ver que a tampa subia e subitamente se soltava, caiando sobre o borda do estojo produzia o som TEC!

Aproxime e me agachei. Meu pai pergunto o que vc tem ai.

Abri a tampa do estojo onde pode-se ver, dentro dele, apinhado e agrupado um punhado destes belos bichinhos que coletava pelas ruas do bairro descampado onde vivia. Eram escuros, encouraçados, com seus chifrinhos de rinoceronte que continuamente tentavam sair da prisão que lhes havia proporcionado, empurrando a tampa do estojo, sem sucesso.

Olhei pro meu pai e disse

- Minha coleção de besouros!

sábado, 1 de maio de 2021

O Terraplanista Obtuso

 


          

             Um renomado Terraplanista fora convidado por uma agência espacial a fazer parte da tripulação de uma nave que seria  lançada no espaço, sairia da orbita terrestre até um ponto onde se pudesse ver a Terra por completo e por fim, se aperceber do seu real formato.

            O Terraplanista aceitou a proposta e no dia acertado para o lançamento espacial lá estava ele devidamente paramentado para aquela aventura que muitos, muitos, supunham daria fim a suas convicções.

        Calado ele entrou na nave e assim permaneceu pelas 12 horas em que ficou na nave, não expressou ideia alguma, nenhuma palavra.

            Admirou a paisagem por uma janela da nave, chegou a colar seu rosto na superfície espessa dela. Observadores na nave pensavam que agora ele estaria convencido. A terra é redonda.

            A nave retornou a Terra. Pousou no mar, um barco resgatou os passageiros, um helicóptero os levou a base onde centenas de jornalistas, curiosos e autoridades esperavam o retorno do renomado Terraplanista.

            O helicóptero pousou na área livre da base, os curiosos já formavam um círculo em volta da aeronave. Um palanque imediatamente fora colocado ao redor.

            Fez-se silencio solene e o renomado Terraplanista desceu da nave.

Sisudo, com expressão séria no semblante. Pigarreou, se aproximou do microfone e proferiu:  - Senhoras e Senhores, cidadãos, cidadãs, autoridades presentes, pessoas da imprensa presente, televisiva e interativa. Passei por uma das experiências mais reveladoras da minha vida. Posso lhes afirmar que foi eletrizante, atordoante até.  Vejam! Assim que me colocaram numa vestimenta espacial percebi um gás envolvendo meu rosto e penetrando em minhas narinas, não havia como não o aspirar. Decerto um gás alucinógeno, porque o que se passou depois foi uma tentativa sórdida de me fazerem sentir dentro de um filme onde a Terra era redonda. Convenhamos mais um grande fiasco destes derrotados: A Terra é Plana! A Terra é Plana!

            Concluiu, apontando para o horizonte.