segunda-feira, 28 de junho de 2021

A METAMORFOSE



Despertei me sentindo um traste.

Mal conseguia me mexer.

Me sentia como um peso enfiado no fundo do colchão.

Minha cabeça pesava mais que uma marreta.

Tentei me mover e não conseguia.

Mais eis que como uma névoa se dissipando a sensação se foi.

Que loucura! De repente senti que eu levitava.

Que mudança! Sai do quarto levitando.

Nem sei como cheguei ao banheiro.

Não me reconheci no espelho!

Dali fui direto para a cozinha.

Talvez fosse tudo um sonho kafkiano!

Tomei café cantarolando: 

- Prefiro ser esta metamorfose ambulante!

sábado, 19 de junho de 2021

O Povo Unido



        Foi numa tarde esquecida pelo tempo, fim dos anos 70, que eu estava caminhando numa rua movimentada no centro da cidade de São Paulo. Um grupo teatral estava fazendo uma performance num largo ao lado de onde se iniciava um calçadão, ante pessoas alheias que passavam por ali como um cardume de peixes apressados, ainda que uns engravatados com pastas pretas, óculos escuros ou não, paravam olhando em volta como que perplexos ante aquele emaranhado de paredes sem céus, tudo cinza e branco misturado as cores de camisetas, camisas e as mantas marrons do grupo teatral.

        Meus olhos se fixavam num gesto mirabolante de um dos integrantes do grupo teatral quando ouvi o som pela primeira vez daquele tambor solitário. No meio da multidão, iluminado, um ser sem cor, sem idade e sem sexo, tocava seu tambor e cantarolava incessantemente

         – O povo unido jamais será vencido! O povo unido jamais será vencido!

        Aquele ser passando como que em câmara lenta no meio da multidão apressada, repetia o mantra e caminhava adiante sem parar, passando, atravessando a corrente.

        O povo unido jamais será vencido!

        Naqueles dias cheguei a ver este ser em outras paradas, em outros momentos, o vi pisoteado nos dias de diretas já. Vi ele de soslaio num dia de caras pretas pelas ruas de uma cidade do interior. Vi ele numa favela abandonada na beira da estrada de rodagem. O vi no exterior numa tarde esquecida num parque, entre fileiras embandeiradas de gente alegre festejando o que chamavam de democracia. O vi numa sala escura com tantos olhos iluminados, lacrimejantes sorrindo para não chorar, acreditando no futuro. 

    O vi em alguns filmes e fotografias, surreais, reais, escondidas, publicadas, esquecidas através dos tempos. Vi ele em ocasiões esporádicas.

    Ontem de tarde, levei um susto. Estava meio que esquecido diante do computador lendo notícias pensando em escrever. De repente escutei vindo da rua aquele batuque familiar, surdo, e a voz, agora fina, mas firme, dizendo repetidamente

    - O Povo unido jamais será vencido!

-     O Povo unido jamais será vencido!

        Olhei pela janela, já havia virado a esquina.

        Cadê o povo?

segunda-feira, 14 de junho de 2021

A SUA PORTA

 

                           

 

Lá vem os dois. Qual seus nomes?

Que diferença faz na tarde, na noite e na manhã que eles cruzam o meu caminho?

Relevante é o ser, e eles são um par de pessoas dignas da minha atenção.

            Ele com seus permanentes óculos escuros. Espessa barba com alguns fios grisalhos lhe tomando o rosto, um gorro, por vezes um chapéu, sempre trajando uma jaqueta de linho ou algodão, calças pretas, botas gastas.

    Ela com seu cabelo rastafári chegando aos ombros, coxas grossas expostas como dois pilares reluzentes, jamais abre mão do shortinho que usa, a blusa agarrada ao corpo, expressão séria que sempre traz no rosto, altiva, olho no olho, ágil e forte mesmo com seu ar cansado.

    Os vejo por aí, ao passarem diante do cemitério, sentados num banco de praça perto da Matriz, numa sarjeta nos arredores do Mercado, na praça de um bairro adjacente ao centro.  Parados, conversando um com ou outro ou dividindo entre si, seus achados catados nas ruas, nas portas de casas, nos lixos, no acaso de uma oferta generosa, que as vezes tem.

    Eles são duas incógnitas lembrando-me, lembrando-nos que a conta não fechou, que há uma ponta solta neste campo social onde sementes são plantadas e muito poucas brotam.

            Eu os vejo sempre por aí. Você os vê batendo a sua porta?

 

terça-feira, 8 de junho de 2021

O DELÍRIO OPOSTO


            Os opostos se atraem. Foi assim que eu ouvi da voz do locutor na tela da TV. Sorridente, ele proferia a afirmação citada. Pensei primeiramente na jogada comercial que este locutor estava fazendo ao anunciar a exibição de um filme naquele canal. 

        Fazendo uma inverdade parecer verdade, uma vez que, na vida humana, opostos não se atraem. E se se atraem é para digladiar, um atacar o outro.  Sim, há as exceções de fato há. Mas não há a necessidade de se averiguar que há mais conexão entre os similares do que entre os opostos.

Em várias esferas, sejam elas sociais, religiosas, cientificas, culturais, cabalísticas, etílicas, clubistas, partidárias, e diversas mais.

Não vejo uma pessoa vegetariana curtindo o ambiente de um churrasco de picanha, linguiça e frango. Nem um umbandista se confraternizando com um evangélico. Mas sim há exceções, acredito nelas, vivo permeando-as, querendo mais e mais vivencia-las. Mas não é o consenso geral. - “Não é o que rola” – diria o meu amigo hippie de plantão.

- “Vamos tocar um rock bem pesado na casa da Opera.”  Falou o doidáo sem consideração. 

Estacionou seu carro super equipado com autos falantes internos e externos em frente da casa da dona Opera e conectando o pendrive no aparelho de som, o ligou no volume máximo. Em instantes, dona Opera abriu a porta de sua casa e saiu em direção a rua, cantando em alto brado: 

- “Oh! Mama: mia! Mama mia! “

terça-feira, 1 de junho de 2021

De Como o Próximo Ficou Distante e o Distante Ficou Próximo

 



            Já vai pouco mais que duas décadas que embarquei na nave online e descobri um novo mundo sem dar volta nele. 

Trilhei nas ilhas do Altavista, acampei nos campos do ICQ, aprendi a abrir trilhas nos e-mails da vida.

Vi o fax ficar sozinho no canto da sala ate um dia que sumiu de vista e nem vi onde foi que foi parar.

 Outro dia vi um robusto aparelho de reproduzir vídeos agonizando no fundo de uma caixa de papelão, pesado com tanto desprezo. Nem me lembro de quanto custou o bendito aparelho que me trouxe muitos filmes pra dentro de casa, e tinha que rebobinar o bendito antes de devolve-lo a locadora.

Mas a Internete, a rainha soberana do momento, chegou discreta avisando por ali e aqui que era um lance legal. Computadores alinhados nas lojas de eletrodomésticos. A conexão paga por hora de uso, de grão em grão foi incorporando gigas, megas, os celulares se acoplaram, todos ficaram felizes, todos das provedoras sem dúvida. Mas os usuários também, uma vez que se dança conforme a música, e dançamos conforme a música, e assim o mundo vem, e assim o mundo vai.

Tenho um amigo que vive no mato por opção, contra a tecnologia, contra o sistema, optou por um modo de vida “orgânico”, com sua horta e pomar, produz geleias, tortas, sucos, e outros produtos artesanais, como uma incrível flauta de bambu. Ele e sua companheira moram bem longe de onde eu vivo. Calculei que são mais ou menos 300 quilômetros de onde estou.

            Porém, ao invés de descer a estrada de terra e parar na beira da estrada asfaltada e expor seus produtos, ele os fotografa com seu celular e os divulga nas redes sociais onde negocia seus produtos. Portanto o contra o sistema abriu um parêntese, aliás foi cooptado. Eu e meu celular, eu e Luciana que nunca a vi e mando abraços, eu e Rubens que temos tantos em comum e jamais nos abraçamos, eu e Eduardo que não vejo há décadas e o vejo sorrindo no aplicativo, eu e Ricardo que vive noutro estado e compomos uma canção, eu e Aline que vive noutro país e me deixa a par de tudo, eu e .... Caramba minha amada lá fora me chamando parece que há um bom tempo, eu aqui perdido neste meu mundo.